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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

AUTORRETRATO



              

          Na paleta as cores estavam dispostas para mais um quadro.
          Nada havia na mente de Carmen, como se somente seu coração estivesse vivo dentro do corpo. A predominância dos tons fechados: azuis e púrpuras densos, o marrom profundo, um preto separado para os contornos eventuais. Havia o branco de sempre com sua tola emanação.
          Os olhos vagos no quadrado da janela que dava para a rua com suas imagens reais; o dia acinzentado, triste, uma pintura dorida, esquecida de si mesma.
        Na armação a tela aguardava calada, sem manchas nem rascunhos. Limpidamente imaculada a superfície que mais se parecia com uma alma em silêncio, os pensamentos fundindo passado e futuro naquele pedaço de pano esticado sem presente algum. A tinta acrílica em seu olfato, como uma droga de preferência, a textura brilhante e profunda de cada tonalidade, o pêlo macio e morto dos pincéis, o avental borrado, o cigarro antigo, tudo... Tudo fazia parte do instante que tentava capturar qualquer pretexto, o impulso daquele primeiro traço, a sua primeira pincelada.


          Lenta? Seria um gesto comedido, uma reflexão? Ou seria como se fosse um espasmo, um corte? Seria vermelho, o calor vibrando aos olhos? Talvez um matiz frio e grave, um azul pressuposto, de chumbo, pesado, lívido como o próprio espírito da solidão que a vitimava.
          Carmen refletia, enquanto a tarde alaranjava o ocaso: o sol vencendo a barra de nuvens, embrenhando-se no vão do atelier já obscuro. Ela tinha que traduzir o sentimento de abandono que era cada vez mais intenso à medida que sua impotência de esquecer aquela última vez crescia. Tinha que pintar aquela rapsódia de Rachmaninoff, cristalizar no tempo parado o piano que dilatava seu peito magoado. Estava só, por dentro e por fora esquecida e breve.
          As lágrimas químicas, o ar invisível penetrando junto com o som as frestas entre as gavetas, por debaixo da porta, as dobras do algodão grampeado no saibro de pinho, as cerdas entrelaçadas presas à cinta de latão...
          Decidiu pelo autorretrato.
         Com uma estilha de carvão traçou um círculo oval, duas tangentes, uma de cada lado, convexas em direção aos ombros desnecessários, o pescoço esguio e teso. Conspurcava sombras com os dedos, pressentindo relevos e imperfeições, espalhando a negra fuligem num transe cego e intuitivo, enquanto a estranha e desconhecida obra se compunha juntamente com o escuro que a noite sempre traz.
          Outro cigarro. O fumo debulhado de propósito sobre a paleta, uma trama menos vegetal do que sintética. O tabaco granulado na cor com a qual fora preenchido o primeiro, porém último plano da figura. O fundo preto secava ao redor de seu rosto vazio. Carmen ainda baforava sobre a tinta: A vaga esperança de levar o olor daquele momento para dentro de sua eternidade consumada.
          Quatro mãos – uma de cada cor – respectivamente: branco, amarelo, roxo e marrom; cada uma em cada um dos cantos do quadro. Duas eram dela, as outras, não sabia...


          De repente uma fisionomia reconhecida foi aparecendo dentro do rosto daquela mulher já não tão estranha, já nem tão infeliz, já não mais completamente solitária. O olhar assustado sorria. O nariz encimando a boca disforme, grotesca. O cabelo voava um vento que não fazia. Rugas. Cílios. Um colar de pedras absurdas e opacas enforcava-lhe umbilical. Medo. Havia muito medo na expressão facial dos três arcanjos de asas quebradas que Carmen pintou, como se fossem demônios inocentes, abortados, pairando sobre a sua inadequada cabeça.
          O piano continuava a incidir na ramagem dourada que ia surgindo em espiral, ao redor de uma proeminência geométrica sem nenhum sentido que aparecia aos poucos, dando uma idéia de escadaria que levava a lugar nenhum.
          Ela ficou durante algum tempo hipnotizada, imóvel diante daquela grosseira personificação de si, antes de pintar o pequeno vulto de um homem nu de costas – como se estivesse caminhando para dentro do escuro daquele ressentimento surrealista. A garrafa de vinho vazia testemunhando os seus aforismos de angústia e fervor; a paleta esquecida, com o dedo polegar quase ferido, estrangulado sem irrigação sanguínea. Os pincéis endurecidos daquele colorido rigor mortis, como se não fossem ser aproveitados nunca mais.
         
          As pílulas faziam efeito muito lentamente...
         
          Carmen começou a lembrar-se: em seu transe via as cores do atelier girando numa inevitável letargia. Só conseguia pensar na última noite em que ela e Diego estiveram juntos. O seu corpo sob o dele, as unhas fincadas nas costas do homem que era o pai do filho que não iria ter. 
          No olor que fazia enquanto o silêncio exalava, a cidade, paralisada na perplexa intimidade, calou suas ruas fantasmas. O suor brilhando a pele, o desejo gelando as paredes e as superfícies das telas; as mãos ávidas, entrelaçadas num único vulto indefinido que vinha dos dois corpos pulsando cada veia daquele êxtase absurdo. Foram tomados de certa comoção e um sussurro breve roubou o ar, quase parando os corações siameses. O atelier tremia um frêmito de almas inteiras, e a paixão brilhava no quilate dos olhos. Carmen podia se mirar no relance que o espelho captava: os negros e longos cabelos de metal, refletindo a pouca luz que da fresta de porta entreaberta insistia. E os livros fizeram sentido, petrificados sobre as prateleiras da velha estante colonial. Os objetos nada mais eram. A métrica dos quadros inacabados e inúteis, envelhecendo nos cavaletes. Lençóis alçavam sinuosos, num enleio, levados por uma brisa cantilena para bem longe daquela nudez de cromatismos. As roupas esquecidas no assoalho frio.
          No epicentro avassalador de um gozo, ela e Diego, envoltos em torpor, deleite e calma, sintetizaram outra espécie de existência impossível – criara-se um tempo a que chamariam de futuro.
          E a sísmica noite estalou em cada grito, cedendo àquela ancestral monogenia. Então, súbito, o universo quis mover-se outra vez, mas o destino, irremediavelmente alterado para sempre na própria sentença factual, percebeu, ao saltar de dentro do inepto passado: O Amor já era tarde demais.


          Foi ali, naquele momento, que para Carmen tudo perdeu a razão. Antes de adormecer, porém, ela ainda escreveu um bilhete no verso da folha de papel que trazia o resultado de seu exame de gravidez – reagente positivo. A letra quase indecifrável transcorria mórbida as poucas palavras daquela débil sentença.

          Quando Carmen foi encontrada já sem vida, na manhã seguinte, uma réstia de sol iluminava e aquecia o seu rosto pálido e defunto. Seus lábios sorriam uma paz suave e definitiva. Madalena, a vizinha do apartamento contíguo, estranhou o som daquele piano que soara por toda a noite e ainda continuava até então, esquecido, como que programado para tocar para sempre. Notando a porta destrancada a mulher adentrou cuidadosamente o atelier, depois de bater algumas vezes sem obter resposta, já pressentindo tudo...
          Por um momento sentiu-se incomodada pelo fato de estar viva, ali sozinha, olhando perplexa para o corpo daquela mulher irremediavelmente falecida. Caminhou até bem perto de Carmen com um medo inútil e pegou o bilhete, arrancando-o da mão fria e tesa. No papel estava escrito: “Este quadro eu deixo para Diego”. Apenas estas palavras estavam escritas, pois na verdade o verdadeiro conteúdo da mensagem encontrava-se na parte da frente da folha. Madalena demorou um pouco até perceber de fato o que havia acontecido, depois de virar o papel e ler o resultado do exame. O forte cheiro de tinta a atordoava: eram duas pessoas que haviam morrido, e não apenas uma.


          Inexplicavelmente, tomada de uma curiosa presença de espírito, Madalena decidiu então que iria guardar aquele segredo. Antes de entrar em contato com os familiares de Carmen, antes de tomar qualquer outra providência, ela pegou uma bisnaga de cor preta que estava sobre a bancada e, num impulso de artista ou de anjo, espremeu todo o seu conteúdo na parte da frente do bilhete, espalhando com uma espátula a grossa camada de tinta sobre toda a área do papel. De repente ali, onde estava escrito o resultado positivo do exame de gravidez, não havia mais nada. Seria, muito provavelmente, o cruel axioma que iria condenar Diego a uma vida de remorso e amargura. Mais do que com o assassinato da criança que Carmen carregava em seu ventre morto, Madalena, comovida, indignara-se com o sádico propósito que havia por detrás daquela vingança, proferida contra Diego.
          Então, usando a tinta ainda fresca como um betume, Madalena colou a tétrica missiva na parte de trás da tela com o auto-retrato. Decerto que a última pintura de Carmen iria ser entregue a Diego, como se nada houvesse acontecido, de acordo com o breve e implacável testamento.


          Madalena saiu do atelier soluçando uma profunda consternação. A música que tocava, ela a deixou tocando: Não queria interferir em mais nada que dissesse respeito ao cenário daquele drama. “Os que vêm que desliguem”, pensou ela, frágil e exaurida.
          A rapsódia transformara-se num réquiem, sem mais nenhuma cor. O piano se ouvia de longe, como se resto do mundo estivesse em silêncio. 




                      




















quinta-feira, 8 de setembro de 2011

SE O TEMPO NÃO PARAR...






           Ela estava mesmo em um daqueles dias em que só se consegue simplesmente fingir que tudo está bem. Nada além disso, apenas fingir, mesmo sendo um fingimento incorporado, admitidamente autêntico, fingir que se está calado, em silêncio, e de fato estar. “Como vai? Tudo bem? – Tudo!” Mentira. “Se soubesse como estou por dentro, parece até que nem estou. Mas, não importa...”.
          Não custava nada uma mentirinha. E fingir já está dizendo: nunca é a coisa em si, embora se pareça perfeitamente com ela. Por isso que fingir é demasiado cansativo. Deve ser por este motivo que ganham tão bem os atores. Principalmente os de televisão e cinema por que conseguem fingir para um numero muito grande de pessoas que são enganadas ao mesmo tempo, com magnetismo, estilo, com propriedade.    
          Mas ela estava meio triste, estava insípida, tinha acordado e não sabia muito bem para quê. Sorria somente com a boca: os olhos fundos de nada ter graça. E isto não é sorriso, nem de longe se parece com quando se está pelo menos alegre de comprar uma coisa supérflua que se quer muito, sem se saber que se queria; encontrar alguém realmente estimado... Mas ninguém era muito querido dentre as pessoas que insistiam em povoar aquele dia indolente de Luana: Seu Adonias, o porteiro imigrado do interior; Dona Matilde e as duas filhas, Samira e Silmara, a magra e a mais magra ainda, filhas também de Seu Hilário, o pai separado que nunca aparecia ou que pelo menos nunca se deixava ver por ali.
          Aliás, na vida – e ela chegou a essa conclusão estarrecedora justamente naquele dia – ninguém lhe era demasiadamente prezado. Pela mãe, Domitila, divorciada de Antunes Salgueiro, o pai, Luana sentia apenas uma espécie de sentimento técnico, uma ligação parental obrigatória, um amor somente lógico que lhe imputava uma visita ou outra, sempre aos sábados ou domingos, um almoço, um passeio breve, junto com a irmã, Letícia, que também ocupava quase o mesmo status de afinidade que a genitora, não fosse por certas confissões mútuas que trocavam raramente, quando uma delas arranjava um namorado novo, um flerte ou coisa parecida.      
          Por que era um daqueles dias em que nada parece que serve, de fato.




          Nada que pudesse trazer Luana de volta daquele começo de depressão do qual teria que fugir, com todas as forças, por não ter tempo para isso e por não ser tão abastada para tanto desfrute. Mesmo que tivesse dinheiro sobrando para pagar uma consulta no psicanalista, não teria, com toda certeza, o dinheiro para as receitas e para o uso continuado dos ansiolíticos, antidepressivos, antidistônicos, antitristeza, antivizinhos, antisimesma...
          Luana passeava de um lado para outro dentro do apartamento que, mesmo com ela dentro, parecia desoladamente vazio. Passeava com a xícara de café na mão. Ia até a janela, olhava as plantas nos vasinhos, quedadas no parapeito. Passava pela frente do espelho, sem se olhar. Pensava, pensava e nada de chegar a qualquer arremate. Talvez mesmo porque não quisesse. De vez em quando parava em frente à mesa da cozinha e pegava uma bolacha que mastigava com abnegação, isto porque não sabia o que querer. Se ao menos tivesse algum projeto, algo que demandasse expectativa, algum plano de economia para dar entrada em alguma coisa maior, um carro novo, quem sabe uma casa própria. Mas não! Era difícil constatar que nada, absolutamente nada, a despeito do grande vácuo que sentia, lhe fazia falta, material e meramente falando.
          Mas eram dez e quinze da manhã e aquele dia só estava apenas começando.
          Ela fazia parte da confusa parcela de mulheres que foram tragadas pela onda de independência, feminismo e emancipação, sem que soubessem de fato o que fazer com isto. Trazia dentro de si constantemente – mas nunca de forma espontânea – os instintos domésticos e primordiais inerentes ao gênero. Tratava-se de uma questão ancestral, talvez genética, um combate do corpo contra a mente, tendo a alma como juiz.
          E a procriação, a maternidade, a perpetuação da espécie? E a delicadeza, para quê, para quem. Antigamente até os cafajestes de carteirinha eram tidos com os melhores partidos do mundo. E hoje em dia... Hoje em dia até mesmo os homens mais voltados ao cavalheirismo são rejeitados sumariamente, representando mais um ícone de aprisionamento do que uma chave mestra para a libertação dos grilhões da família de origem. Família? Era evidente que Luana sentia, mesmo sem o saber, uma tremenda necessidade de constituir uma família, com marido, crianças, com gato, cachorro, papagaio e tudo o mais.
          E este anseio obscuro se escondia nas entrelinhas de cada pronunciamento que fazia na frente das poucas amigas que cultivava com parcimônia em seu pequeno universo social, quando da ocasião de uma saída para uma conversa, um drinque ou um chá no final de tarde. Perfeito: uma mesa com quatro ou cinco mulheres fazendo aquele discreto alarido, falando sobre homem, moda, roupa íntima, sexo, sexo, sexo, dieta, dieta e dieta...
          O interesse eventual pelas coisas da culinária devia-se apenas ao fato de estar em voga homem ir para a cozinha, embora os programas de televisão que mostram este tipo de coisa sejam ainda muito parecidos com conversa de comadres também.




             Não havia como escapar: “O isolamento é a doença e o remédio desta época confusa em que vivemos”, pensava, conformada dentro do seu invólucro de angústia e filosofia. Não que a filosofia tenha sido inventada para descrever tão somente os pormenores da natureza feminina, mas, que parece isto, parece.
           Fazia uns seis meses que Luana não namorava ninguém. E aquilo foi desembocar justo naquele dia em que sorrir estava difícil. A última experiência tinha sido desastrosa: um músico intermediário, de certo talento, mas sem carisma algum, um tanto quanto acomodado. Ela se cansara de acompanhá-lo pelos barzinhos da cidade. No começo era interessante, trazia-lhe um ar de poder e exclusividade, o domínio daquele temperamento leviano e inconstante – o do músico. Depois a rotina falou mais alto, ela nem queria mais acompanhá-lo e nem acreditava que ele pudesse continuar sendo fiel ao suposto compromisso, já que o rapaz – pelo menos a princípio – sempre tinha à mão qualquer mulher que quisesse conquistar com seus dotes de menestrel, galanteador de segunda categoria. Mas o que mais pesou foi o fato de que a relação estava mesmo saindo dispendiosa para ela. Luana sempre se ajeitava para emprestar algum dinheiro – nunca o via de volta – para pagar alguma conta atrasada do artista, que, sempre em altos e baixos, não conseguia se estabilizar nem tampouco lhe transmitir o mínimo de segurança. Não passaram mais que seis meses juntos e o envolvimento, apesar do tempo que durou, não fora sequer sério o bastante para que ela sofresse. Ao contrário, ficou muito aliviada com o fim da relação que morreu mesmo de morte natural, morte morrida.
          Antes do namoro com Flávio Reis – o cantor – Luana havia se ligado a um médico, ginecologista, Amâncio Siqueira, Dr. Amâncio, um que faltava somente uns sete ou oito anos para ter idade de poder ser seu pai. Obviamente que também não vingou. A profissão do homem explica rapidamente os motivos pelos quais... Sim, porque “essa estória de idade não tem nada a ver”, ela sempre repetia o bordão que, talvez por não convencê-la, também não convencia a ninguém.
          A desilusão amorosa às vezes se parece com uma conta a pagar, uma prestação que faz sofrer e dá dor de cabeça, rouba o sono mas da qual se sente uma ponta de saudade do carnê quando este é quitado. Mas como tudo na vida passa se o tempo não parar, Luana estava novamente sozinha, sem estar nem alegre nem triste. Estava cheia de um vazio que só aprendeu a preencher através dos livros, filmes ou de uma boa musica, quando refestelada com fones de ouvido no tapete felpudo da sua sala de estar.
          Admitia ser portadora de uma extrema inabilidade para os relacionamentos. A imperícia era nítida, sempre que tentava se aproximar de algum homem pelo qual se interessava. No entanto, sempre teve exatamente quem quis – e foram poucos – ainda que por pouco tempo, embora que só para fazer sexo, mesmo quando querendo algo mais. Isto era um sinal precioso de sua grande obstinação e empenho para com os objetos de seu querer. Mas, como foi dito antes, Luana estava com um problema atualmente: não sabia o quê querer. Deixou os dias e meses irem se passando até chegar à beira deste abismo em que nesta manhã se encontrava. 



        
          Queria, por exemplo, ter estudado veterinária e como acabou não fazendo isto, também não criava nenhum bicho, nenhum animal de estimação, só de raiva. Queria ter conhecido a Amazônia, o Rio Grande do Sul. Imaginava o quanto Fortaleza deveria ser linda. Salvador, o Nordeste todo, enfim... Queria ter ido ao Pantanal, ter conhecido alguns lugares no exterior também: Lisboa, África, Paris. O Egito? Talvez, porque não? Essas coisas absurdas que todo mundo que não pode ter quer.
          Luana estava fazendo trinta anos de idade. Isto era o que lhe incomodava. Sabia que daqui a pouco o telefone começaria a tocar com aqueles mesmos votos de parabéns. Mas quem lhe daria o que realmente lhe faria feliz? Nem ela mesma sabia o quê... E por isto estava dispersa, mínima e sem gosto. Como é que ela, que não sabia o que queria, poderia esperar que alguém o soubesse? O que ela queria era saber o que querer, mas, querer com afinidade, vínculo. Querer como se algo existisse para ela, só para ela, particularmente, de uma forma distinta, única, a preencher-lhe aquele oco. Nem mesmo um presente dos céus, se não fosse o que ela – que não sabia o que queria – quisesse, serviria. “Porque não é só porque tal coisa vem de Deus, diretamente do Criador, carregada pelos anjinhos mensageiros, que vai ser o que se quer” pensava. Por exemplo: da última vez em que pediu um namorado – olha a complicação que foi – Deus mandou-lhe foi o Flávio Reis, aquilo fora um transtorno, isto sim. Porque o Amâncio, o Dr. Amâncio Siqueira ela nem sequer pediu, ele apareceu de lambuja mesmo. Por isso resolveu que não queria mais pedir nada ao Todo Poderoso, já que Ele, dentro da Sua imensa generosidade, sempre a atendia, só para que depois ela descobrisse que não formulara o pedido direito. Como querer algo sem a devida consciência de que depois, com o passar do tempo, não se quereria mais. Pois não é que é mesmo assim o ser humano: hoje, chorando porque não tem; amanhã, porque também... É sempre assim.
          E foi com este pensamento desencadeado em espiral que Luana começou a refletir sobre o que tinha – e conseqüentemente sobre o que não tinha.




             Começou a tentar se lembrar da quantidade de querer que envolvera cada pequena ou grande coisa ao seu redor. Chegou à conclusão de que tudo o que havia em sua casa era fruto de seu próprio querer, coisas compradas ou arranjadas por ela mesma. E lembrou-se do êxtase que sentiu quando viu a mesinha em pátina, montada e aparafusada em sua parede. Os móbiles da varanda – ela sonhara semanas inteiras com aquele barulhinho que fazem até hoje, quando sopra o vento. Pensou neles tanto, que um dia não resistiu e foi lá, buscá-los com as próprias mãos, até poder sentir o gozo final. O tapete felpudo também: passava em frente à loja e ficava se imaginando deitada nele, primeiro sozinha, para inaugurá-lo, é óbvio, depois acompanhada de um namorado, as pernas entrelaçadas, tudo pensado antes, com detalhes, em forma de querer primordial.
               Luana pensou e, ao dar-se por si, estava valorizando cada livro em sua estante, cada roupa em seu armário, cada utensílio, cada bobagenzinha à sua volta. Chegou mesmo a pensar que estaria sendo terrivelmente injusta e mal agradecida com a vida que, até então, havia já tanto lhe proporcionado.
          O que queria e não tinha, talvez fosse somente uma antecipação inteligente do seu destino, em função do que passaria depois a não querer mais, só que sem ter que ter o trabalho de se desfazer. Tudo perfeitamente engendrado, calculado e manipulado por uma Mente Superior, que talvez sempre fizesse o possível para que ela, a própria Luana não atrapalhasse.
          Assim, foi começando a sentir um conforto dentro de sua alma banalizada por tantas faltas. Foi ganhando um novo ânimo, que vinha desta desmantelada linha de raciocínio. Sentiu-se plena: nunca estaria satisfeita, tivesse o que tivesse, fosse o que fosse! Nunca seria exatamente o que projetava para si própria. Aquilo era a própria Paz!
          E começou a sentir o quanto era bom não ter feito veterinária, não ter viajado – ainda – para todos aqueles lugares. Pensou no quanto era bom e gratificante estar sozinha, sem ninguém para ocupar esta lacuna, este espaço tão valioso em seu querer de reserva. Sentiu vontade de dar um abraço em Seu Adonias, de convidar Samira e Silmara para um pudim, um pedaço de bolo... Ligou para sua mãe perguntando-lhe a que horas elas, Domitila e Letícia iriam visitá-la, para lhe desejarem feliz aniversário. Afinal, Luana estava mesmo em um daqueles dias em que só se consegue simplesmente fingir que tudo está bem. Tanto que de repente tudo realmente fica, porque tudo, absolutamente tudo passa, se o tempo não parar...  


         





sexta-feira, 15 de julho de 2011

NÃO TEM NINGUÉM

Não tem ninguém
Que saiba o que é tudo
Que não sinta medo
Que não fique mudo
Não tem segredo
Que não caiba num quarto
Ninguém que não tenha
Saído de um parto
Não tem ninguém
Que abrace o universo
Não tem inverso
Que não tenha contrário
Horário que alguém
Não tenha perdido
Não tem ninguém
Que nunca foi proibido








Não tem ninguém, não tem ninguém
Não tem ninguém, não tem ninguém...








Não tem ninguém que não respire este ar
Não tem ninguém que nunca tenha sofrido
Alguém que saiba exatamente amar
Alguém que explique o que não faz mais sentido.

(D. Duarte)



sexta-feira, 8 de julho de 2011

UM OCASO

Teus cabelos vermelhos
Os olhos, dois espelhos cegos
Não me diz mais nada
Mais nada
Teu silêncio, tua alma muda, tua apatia...


No céu da madrugada fria
De estrelas caladas teu semblante vazio
Teus punhais e espadas, o torpor sombrio
De enganos, mentiras, verdades massacradas
Mascaradas, condenadas a te esconder


Nada mais veio me dizer
Nenhum sinal, nenhuma dor para entender...
Tua pele de gelo, tuas unhas falsas
Tuas garras negras, escondidas, contidas
Teu hálito irreconhecível, tua inerte razão

A calma do teu desespero no metal da noite
A própria noite, no escuro do escuro sentimento
Cada momento século pulsa tua inocente ingratidão
Cada segundo se move como um nevoeiro
Tomando aos poucos as frestas da cansada embarcação


Lento, agora o dia escorre
Para o ocaso
De tua indiferença distraída – a mesma que por fim nos dissipou
Como uma sentença, há muito já percebida
Desta espécie de morte
A mesma que nos aplacou.




2007 ...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

CHOVI

Água que se move
Move-se 
De dentro para fora
De mim
Estado de assim
Puramente chover
Na hora
Em que o céu
O deus
A canção
O início e o fim

São nada...
Água.











Chuva
Certa

Que da madrugada cheia de silêncio e reflexão veio dar exatamente no desaguar desta manhã...

Meu dia é 
Meu ser tem
Ser tem que ser tão

Sempre?

Então chove para 
E chove 
Outra vez
Então 
Para
Começar 
A outra vez

Chover
Lava o que não sei

Dizer...



terça-feira, 3 de maio de 2011

REMÉDIOS





Agora eu quero remédios
Muitos remédios
De todas as cores
De vários tamanhos
E amargos sabores


 Qualquer comprimido
Um milhão de cartelas
Em frascos de vidro
Não importam as sequelas

Pilulinhas azuis, bolinhas amarelas
Efeitos colaterais pra sentir de tabela
Não importa o remédio
Remédio sem prescrição
Remédio de tarja preta
Remédio pra solidão
Uma receita pra dor
E super dosagem pro amor


 Agora eu quero remédios
Muitos remédios
Pra eu esquecer quem não sou
Eu quero um remédio
Pra você se acalmar
Um tranquilizante 
Pra eu poder me calar
Um expectorante
Pra fazer perdoar
Um antioxidante
Pra eu fingir que não estou

Mesmo sendo placebo
Qualquer coisa eu bebo
Xarope da perfeição
Injeção da paciência
Alguma revolução
Uma invenção da ciência


 Eu quero muitos remédios
Pra acordar minha apatia
Pra adormecer o meu vício
Pra passar meu sacrifício
As cápsulas de poesia

Remédio pra adoecer
Pra ter que ter terapia...

Remédio pra tomar de noite
Remédio pra não ver o dia
Uma fórmula, uma magia
Pra me transformar

Eu quero muitos remédios
Que a doença é a própria fissura
É a crença de que existe uma cura 
Pra não ser tão difícil amar...









...

terça-feira, 26 de abril de 2011

DOIS



O amor tem razões
Que a mera paixão desconhece
Finge que esquece, o amor
Diz que é uma dor
Que não cabe
Mas, no fundo, o amor sabe
O que é certo ou errado
Une presente e passado
Na mesma cama
Na mesma sala
O amor não se cala
Chama para conversar
Já a paixão não espera
Este tempo passar













O amor tem razões
A paixão, argumentos
Ele vive de emoções
E ela, de momentos.




...

sábado, 23 de abril de 2011

UM IDÍLIO

Deixo partir o que de você em mim
Coloco-me em posição de memória
Esqueço sem, no entanto, sim
Perder de todo sua imagem...

E ficou...

A prata absurda na água da tarde marinha
O silêncio, mais do que tudo
Tudo o que se poderia haver dito
Suas odes, seu olhar aflito


Deixo a maré  
Desprendo-me
Suave é poder ser
Sem ter que ter 
Com ninguém
Mero é existir e querer 
O que vem


E supondo
Supondo que tudo se dissipa
Orla, barca, peixe, areia, vela, prédio
Gente, sopro, vento, sal e sal, e mar, e vida
Orgulho, medo, amor, amor, suor, saliva

Crispada Solidão

Deixo partir o que de mim agora
Quer apenas fingir












Mentir que é apenas coração...



sexta-feira, 22 de abril de 2011

SUPOSTAMENTE


          E nos encontrávamos, mutuamente estranhos, desconfiados e recentes, cheios de uma prudência que vinha não de não nos conhecermos, mas sim, de termos a perfeita noção do que seria o outro, caso viéssemos a nos entregar.  E, o que viria do outro, talvez não mais chegasse a nos pertencer. Tudo o que era dolorosamente identificável, era disto que íamos fugindo, fugindo e fugindo...
          Mas é este medo que tem nos aproximado vida a fora, esta marca que nos deixa – e agora até mais profunda, por sabermos, hoje, o que significa o termo amizade, mais do que antes – esta marca que nos deixa feridos de conhecimento e de passado.
          E eu a deixava em casa, depois de um beijo em seu rosto branco e frio, esperando, enquanto ela abria o portão bem devagar, pensativa e mesma. E em meu pensamento eu a agradecia de alguma forma por não termos ainda... Velava sua partida, com o carro ainda impregnado de sua presença, já que eu sempre fora tão absolutamente sozinho: sua presença, incrustada naquele momento, que parecia uma inscrição em pedra antiga, dentro do meu peito inacabado tal e qual um poema cujo último verso fora rejeitado.
          Não sei por que não éramos ainda amantes, se sei por que sempre fomos amigos.


         E Deus experimentava-se, relativo e incapaz, descabido e inútil, depois de rir-se de si próprio, justamente por haver me deixado escolha. E minha alma cansada de esperar por nós... Deus, voltando para a sua monótona condição do absoluto, depois que eu sempre dobrava a esquina como se tivesse acabado de encher mais uma página do meu álbum de figurinhas, ainda incompleto... Isto porque durante o dia eu pensava nela, mas sem, no entanto, lhe telefonar, sendo isto o bastante só enquanto outra noite nossa não vinha.
          Na medida em que eu analisava a forma de suas nádegas de mulher madura, a inteligência inscrita no vai e vem das ancas, ela ia afastando-se em direção à porta da casa para onde não estava nunca bem certa de que quereria de fato voltar. Quase nunca deixava de ser madrugada para nos dois.
          E nos pesquisávamos pacientemente sôfregos de nunca mais ter havido certezas. Bebíamo-nos, como um sobejo de antídoto, suficientes para nos acordar.  E o tempo ia passando com as coisas do mundo e da vida em seu dorso – uma montaria lenta de saber a distância. O mesmo tempo do qual sempre fomos a substância da própria espera, o mesmo que sempre precisou de nós dois para poder dizer que sabia existir.


          E Deus continuava, querendo aprender a ser pequeno através de nós. Deus, que era e poderia ser tudo, que por essência de simples denominação dependia constrangedoramente daquela escolha que talvez nem nunca fizéssemos. Deus, que pela sua própria natureza – mais etimológica do que meramente real – preferia o incerto e o acaso de tudo aquilo que na verdade nos concedera.
          Algo havia entre nós? Algo que senão nosso diâmetro de incapacidade? Nosso campo de força invisível, sem força alguma...
          Sua família sabia que não havia nada, mas, não podia ser! Deixávamos àquelas pessoas, quando saíamos inocentes pela noite da cidade alheia, a prerrogativa de poder supor. E poder supor sempre valia muito mais, para eles, e por mais que fosse incômodo, do que poder saber.  Não era com aquelas pessoas que se comunicava a minha dramática afinidade, embora preparado sempre para dizer não a um provável convite: – Entre. Vamos tomar um café, pensavam, sem ter a mesma coragem que eu também não tinha: – Não, obrigado mesmo. Fica para uma próxima vez, como coisa que este futuro me pertencesse.
          Mas um dia eu entrei em sua casa. Um dia eu entrei, despido de medo, eu entrei para conhecer seus passarinhos; os passarinhos que conviviam com os gatos, provando que, talvez, quem sabe algum dia, nós dois também pudéssemos até ser... E eu me lembro que fiquei espantado. Eu, que bem antes tivera tantos motivos para conhecer aquela casa e não o fiz. Percebi que o tempo também havia passado para aquelas pessoas. Só que agora eu já não tinha mais medo de não ser o que eles talvez tivessem tanto querido que eu fosse. Eu nem me bastava agora, de tanto pensar me conhecer, então que diferença faria? Seria ridiculamente paralisante o medo que eu voltaria a sentir, se quisesse me casar com ela. No entanto, como só queríamos um do outro a amizade, talvez isto fosse muito mais íntimo, perigoso, grande e fatal – não mais para nós.


          Gastávamos nossas delicadezas um com o outro: tudo o que nos restara. Esperávamos, sem ansiedade, pelo corpo esquecido e calmo do outro. Ousávamos carícias de quando fomos, um dia, adolescentes e ingênuos. Fazia muitos anos e aquele tempo todo parece que não era nada. Não era nada porque não podíamos voltar atrás, não queríamos estragar nossa brincadeira de suportar os desejos. Não vivíamos mais somente de simples desejos, éramos completamente diferentes de nós mesmos, quando tínhamos toda a juventude para errar e errar outra vez. Sumíamos e aquilo sequer fazia falta, pois, a falta – descobriríamos mais tarde, já distantes – era apenas mais uma de nossas tolas invenções. E inventávamos outras coisas, tolas também, não menos inverídicas, mas que por sua vez nos serviam de alento para o que éramos agora; coisas que combinavam muito mais com o que este passar dos anos nos havia enfim transformado, o que também não queria dizer que fosse isto o que nos uniria ou deixaria de unir...


          E não adiantava Deus querer ou não querer. Agora, parece que finalmente éramos só nos dois. Estávamos a sós, nos livrando das nossas relíquias, assim como foi preciso abrir mão de tudo o que foi perdido naquela espécie de incêndio sem rescaldo que fomos, já no fim de termos estado tão perto, o fogo que nos consumiu um ao outro.

          Mas estávamos agora nos reencontrando, livres de nós mesmos, sem expectativas nem ressentimentos, sem alívio. Então íamos, supostamente.
          E, por alguma incompreensível razão, continuávamos indo.