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sexta-feira, 22 de abril de 2011

SUPOSTAMENTE


          E nos encontrávamos, mutuamente estranhos, desconfiados e recentes, cheios de uma prudência que vinha não de não nos conhecermos, mas sim, de termos a perfeita noção do que seria o outro, caso viéssemos a nos entregar.  E, o que viria do outro, talvez não mais chegasse a nos pertencer. Tudo o que era dolorosamente identificável, era disto que íamos fugindo, fugindo e fugindo...
          Mas é este medo que tem nos aproximado vida a fora, esta marca que nos deixa – e agora até mais profunda, por sabermos, hoje, o que significa o termo amizade, mais do que antes – esta marca que nos deixa feridos de conhecimento e de passado.
          E eu a deixava em casa, depois de um beijo em seu rosto branco e frio, esperando, enquanto ela abria o portão bem devagar, pensativa e mesma. E em meu pensamento eu a agradecia de alguma forma por não termos ainda... Velava sua partida, com o carro ainda impregnado de sua presença, já que eu sempre fora tão absolutamente sozinho: sua presença, incrustada naquele momento, que parecia uma inscrição em pedra antiga, dentro do meu peito inacabado tal e qual um poema cujo último verso fora rejeitado.
          Não sei por que não éramos ainda amantes, se sei por que sempre fomos amigos.


         E Deus experimentava-se, relativo e incapaz, descabido e inútil, depois de rir-se de si próprio, justamente por haver me deixado escolha. E minha alma cansada de esperar por nós... Deus, voltando para a sua monótona condição do absoluto, depois que eu sempre dobrava a esquina como se tivesse acabado de encher mais uma página do meu álbum de figurinhas, ainda incompleto... Isto porque durante o dia eu pensava nela, mas sem, no entanto, lhe telefonar, sendo isto o bastante só enquanto outra noite nossa não vinha.
          Na medida em que eu analisava a forma de suas nádegas de mulher madura, a inteligência inscrita no vai e vem das ancas, ela ia afastando-se em direção à porta da casa para onde não estava nunca bem certa de que quereria de fato voltar. Quase nunca deixava de ser madrugada para nos dois.
          E nos pesquisávamos pacientemente sôfregos de nunca mais ter havido certezas. Bebíamo-nos, como um sobejo de antídoto, suficientes para nos acordar.  E o tempo ia passando com as coisas do mundo e da vida em seu dorso – uma montaria lenta de saber a distância. O mesmo tempo do qual sempre fomos a substância da própria espera, o mesmo que sempre precisou de nós dois para poder dizer que sabia existir.


          E Deus continuava, querendo aprender a ser pequeno através de nós. Deus, que era e poderia ser tudo, que por essência de simples denominação dependia constrangedoramente daquela escolha que talvez nem nunca fizéssemos. Deus, que pela sua própria natureza – mais etimológica do que meramente real – preferia o incerto e o acaso de tudo aquilo que na verdade nos concedera.
          Algo havia entre nós? Algo que senão nosso diâmetro de incapacidade? Nosso campo de força invisível, sem força alguma...
          Sua família sabia que não havia nada, mas, não podia ser! Deixávamos àquelas pessoas, quando saíamos inocentes pela noite da cidade alheia, a prerrogativa de poder supor. E poder supor sempre valia muito mais, para eles, e por mais que fosse incômodo, do que poder saber.  Não era com aquelas pessoas que se comunicava a minha dramática afinidade, embora preparado sempre para dizer não a um provável convite: – Entre. Vamos tomar um café, pensavam, sem ter a mesma coragem que eu também não tinha: – Não, obrigado mesmo. Fica para uma próxima vez, como coisa que este futuro me pertencesse.
          Mas um dia eu entrei em sua casa. Um dia eu entrei, despido de medo, eu entrei para conhecer seus passarinhos; os passarinhos que conviviam com os gatos, provando que, talvez, quem sabe algum dia, nós dois também pudéssemos até ser... E eu me lembro que fiquei espantado. Eu, que bem antes tivera tantos motivos para conhecer aquela casa e não o fiz. Percebi que o tempo também havia passado para aquelas pessoas. Só que agora eu já não tinha mais medo de não ser o que eles talvez tivessem tanto querido que eu fosse. Eu nem me bastava agora, de tanto pensar me conhecer, então que diferença faria? Seria ridiculamente paralisante o medo que eu voltaria a sentir, se quisesse me casar com ela. No entanto, como só queríamos um do outro a amizade, talvez isto fosse muito mais íntimo, perigoso, grande e fatal – não mais para nós.


          Gastávamos nossas delicadezas um com o outro: tudo o que nos restara. Esperávamos, sem ansiedade, pelo corpo esquecido e calmo do outro. Ousávamos carícias de quando fomos, um dia, adolescentes e ingênuos. Fazia muitos anos e aquele tempo todo parece que não era nada. Não era nada porque não podíamos voltar atrás, não queríamos estragar nossa brincadeira de suportar os desejos. Não vivíamos mais somente de simples desejos, éramos completamente diferentes de nós mesmos, quando tínhamos toda a juventude para errar e errar outra vez. Sumíamos e aquilo sequer fazia falta, pois, a falta – descobriríamos mais tarde, já distantes – era apenas mais uma de nossas tolas invenções. E inventávamos outras coisas, tolas também, não menos inverídicas, mas que por sua vez nos serviam de alento para o que éramos agora; coisas que combinavam muito mais com o que este passar dos anos nos havia enfim transformado, o que também não queria dizer que fosse isto o que nos uniria ou deixaria de unir...


          E não adiantava Deus querer ou não querer. Agora, parece que finalmente éramos só nos dois. Estávamos a sós, nos livrando das nossas relíquias, assim como foi preciso abrir mão de tudo o que foi perdido naquela espécie de incêndio sem rescaldo que fomos, já no fim de termos estado tão perto, o fogo que nos consumiu um ao outro.

          Mas estávamos agora nos reencontrando, livres de nós mesmos, sem expectativas nem ressentimentos, sem alívio. Então íamos, supostamente.
          E, por alguma incompreensível razão, continuávamos indo.




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