Total de visualizações de página

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

AUTORRETRATO



              

          Na paleta as cores estavam dispostas para mais um quadro.
          Nada havia na mente de Carmen, como se somente seu coração estivesse vivo dentro do corpo. A predominância dos tons fechados: azuis e púrpuras densos, o marrom profundo, um preto separado para os contornos eventuais. Havia o branco de sempre com sua tola emanação.
          Os olhos vagos no quadrado da janela que dava para a rua com suas imagens reais; o dia acinzentado, triste, uma pintura dorida, esquecida de si mesma.
        Na armação a tela aguardava calada, sem manchas nem rascunhos. Limpidamente imaculada a superfície que mais se parecia com uma alma em silêncio, os pensamentos fundindo passado e futuro naquele pedaço de pano esticado sem presente algum. A tinta acrílica em seu olfato, como uma droga de preferência, a textura brilhante e profunda de cada tonalidade, o pêlo macio e morto dos pincéis, o avental borrado, o cigarro antigo, tudo... Tudo fazia parte do instante que tentava capturar qualquer pretexto, o impulso daquele primeiro traço, a sua primeira pincelada.


          Lenta? Seria um gesto comedido, uma reflexão? Ou seria como se fosse um espasmo, um corte? Seria vermelho, o calor vibrando aos olhos? Talvez um matiz frio e grave, um azul pressuposto, de chumbo, pesado, lívido como o próprio espírito da solidão que a vitimava.
          Carmen refletia, enquanto a tarde alaranjava o ocaso: o sol vencendo a barra de nuvens, embrenhando-se no vão do atelier já obscuro. Ela tinha que traduzir o sentimento de abandono que era cada vez mais intenso à medida que sua impotência de esquecer aquela última vez crescia. Tinha que pintar aquela rapsódia de Rachmaninoff, cristalizar no tempo parado o piano que dilatava seu peito magoado. Estava só, por dentro e por fora esquecida e breve.
          As lágrimas químicas, o ar invisível penetrando junto com o som as frestas entre as gavetas, por debaixo da porta, as dobras do algodão grampeado no saibro de pinho, as cerdas entrelaçadas presas à cinta de latão...
          Decidiu pelo autorretrato.
         Com uma estilha de carvão traçou um círculo oval, duas tangentes, uma de cada lado, convexas em direção aos ombros desnecessários, o pescoço esguio e teso. Conspurcava sombras com os dedos, pressentindo relevos e imperfeições, espalhando a negra fuligem num transe cego e intuitivo, enquanto a estranha e desconhecida obra se compunha juntamente com o escuro que a noite sempre traz.
          Outro cigarro. O fumo debulhado de propósito sobre a paleta, uma trama menos vegetal do que sintética. O tabaco granulado na cor com a qual fora preenchido o primeiro, porém último plano da figura. O fundo preto secava ao redor de seu rosto vazio. Carmen ainda baforava sobre a tinta: A vaga esperança de levar o olor daquele momento para dentro de sua eternidade consumada.
          Quatro mãos – uma de cada cor – respectivamente: branco, amarelo, roxo e marrom; cada uma em cada um dos cantos do quadro. Duas eram dela, as outras, não sabia...


          De repente uma fisionomia reconhecida foi aparecendo dentro do rosto daquela mulher já não tão estranha, já nem tão infeliz, já não mais completamente solitária. O olhar assustado sorria. O nariz encimando a boca disforme, grotesca. O cabelo voava um vento que não fazia. Rugas. Cílios. Um colar de pedras absurdas e opacas enforcava-lhe umbilical. Medo. Havia muito medo na expressão facial dos três arcanjos de asas quebradas que Carmen pintou, como se fossem demônios inocentes, abortados, pairando sobre a sua inadequada cabeça.
          O piano continuava a incidir na ramagem dourada que ia surgindo em espiral, ao redor de uma proeminência geométrica sem nenhum sentido que aparecia aos poucos, dando uma idéia de escadaria que levava a lugar nenhum.
          Ela ficou durante algum tempo hipnotizada, imóvel diante daquela grosseira personificação de si, antes de pintar o pequeno vulto de um homem nu de costas – como se estivesse caminhando para dentro do escuro daquele ressentimento surrealista. A garrafa de vinho vazia testemunhando os seus aforismos de angústia e fervor; a paleta esquecida, com o dedo polegar quase ferido, estrangulado sem irrigação sanguínea. Os pincéis endurecidos daquele colorido rigor mortis, como se não fossem ser aproveitados nunca mais.
         
          As pílulas faziam efeito muito lentamente...
         
          Carmen começou a lembrar-se: em seu transe via as cores do atelier girando numa inevitável letargia. Só conseguia pensar na última noite em que ela e Diego estiveram juntos. O seu corpo sob o dele, as unhas fincadas nas costas do homem que era o pai do filho que não iria ter. 
          No olor que fazia enquanto o silêncio exalava, a cidade, paralisada na perplexa intimidade, calou suas ruas fantasmas. O suor brilhando a pele, o desejo gelando as paredes e as superfícies das telas; as mãos ávidas, entrelaçadas num único vulto indefinido que vinha dos dois corpos pulsando cada veia daquele êxtase absurdo. Foram tomados de certa comoção e um sussurro breve roubou o ar, quase parando os corações siameses. O atelier tremia um frêmito de almas inteiras, e a paixão brilhava no quilate dos olhos. Carmen podia se mirar no relance que o espelho captava: os negros e longos cabelos de metal, refletindo a pouca luz que da fresta de porta entreaberta insistia. E os livros fizeram sentido, petrificados sobre as prateleiras da velha estante colonial. Os objetos nada mais eram. A métrica dos quadros inacabados e inúteis, envelhecendo nos cavaletes. Lençóis alçavam sinuosos, num enleio, levados por uma brisa cantilena para bem longe daquela nudez de cromatismos. As roupas esquecidas no assoalho frio.
          No epicentro avassalador de um gozo, ela e Diego, envoltos em torpor, deleite e calma, sintetizaram outra espécie de existência impossível – criara-se um tempo a que chamariam de futuro.
          E a sísmica noite estalou em cada grito, cedendo àquela ancestral monogenia. Então, súbito, o universo quis mover-se outra vez, mas o destino, irremediavelmente alterado para sempre na própria sentença factual, percebeu, ao saltar de dentro do inepto passado: O Amor já era tarde demais.


          Foi ali, naquele momento, que para Carmen tudo perdeu a razão. Antes de adormecer, porém, ela ainda escreveu um bilhete no verso da folha de papel que trazia o resultado de seu exame de gravidez – reagente positivo. A letra quase indecifrável transcorria mórbida as poucas palavras daquela débil sentença.

          Quando Carmen foi encontrada já sem vida, na manhã seguinte, uma réstia de sol iluminava e aquecia o seu rosto pálido e defunto. Seus lábios sorriam uma paz suave e definitiva. Madalena, a vizinha do apartamento contíguo, estranhou o som daquele piano que soara por toda a noite e ainda continuava até então, esquecido, como que programado para tocar para sempre. Notando a porta destrancada a mulher adentrou cuidadosamente o atelier, depois de bater algumas vezes sem obter resposta, já pressentindo tudo...
          Por um momento sentiu-se incomodada pelo fato de estar viva, ali sozinha, olhando perplexa para o corpo daquela mulher irremediavelmente falecida. Caminhou até bem perto de Carmen com um medo inútil e pegou o bilhete, arrancando-o da mão fria e tesa. No papel estava escrito: “Este quadro eu deixo para Diego”. Apenas estas palavras estavam escritas, pois na verdade o verdadeiro conteúdo da mensagem encontrava-se na parte da frente da folha. Madalena demorou um pouco até perceber de fato o que havia acontecido, depois de virar o papel e ler o resultado do exame. O forte cheiro de tinta a atordoava: eram duas pessoas que haviam morrido, e não apenas uma.


          Inexplicavelmente, tomada de uma curiosa presença de espírito, Madalena decidiu então que iria guardar aquele segredo. Antes de entrar em contato com os familiares de Carmen, antes de tomar qualquer outra providência, ela pegou uma bisnaga de cor preta que estava sobre a bancada e, num impulso de artista ou de anjo, espremeu todo o seu conteúdo na parte da frente do bilhete, espalhando com uma espátula a grossa camada de tinta sobre toda a área do papel. De repente ali, onde estava escrito o resultado positivo do exame de gravidez, não havia mais nada. Seria, muito provavelmente, o cruel axioma que iria condenar Diego a uma vida de remorso e amargura. Mais do que com o assassinato da criança que Carmen carregava em seu ventre morto, Madalena, comovida, indignara-se com o sádico propósito que havia por detrás daquela vingança, proferida contra Diego.
          Então, usando a tinta ainda fresca como um betume, Madalena colou a tétrica missiva na parte de trás da tela com o auto-retrato. Decerto que a última pintura de Carmen iria ser entregue a Diego, como se nada houvesse acontecido, de acordo com o breve e implacável testamento.


          Madalena saiu do atelier soluçando uma profunda consternação. A música que tocava, ela a deixou tocando: Não queria interferir em mais nada que dissesse respeito ao cenário daquele drama. “Os que vêm que desliguem”, pensou ela, frágil e exaurida.
          A rapsódia transformara-se num réquiem, sem mais nenhuma cor. O piano se ouvia de longe, como se resto do mundo estivesse em silêncio. 




                      




















Nenhum comentário:

Postar um comentário