Na paleta as cores estavam dispostas para mais um quadro.
Nada havia na mente de Carmen, como
se somente seu coração estivesse vivo dentro do corpo. A predominância dos tons
fechados: azuis e púrpuras densos, o marrom profundo, um preto separado para os
contornos eventuais. Havia o branco de sempre com sua tola emanação.
Os olhos vagos no quadrado da janela
que dava para a rua com suas imagens reais; o dia acinzentado, triste, uma
pintura dorida, esquecida de si mesma.
Na armação a tela aguardava calada, sem
manchas nem rascunhos. Limpidamente imaculada a superfície que mais se parecia
com uma alma em silêncio, os pensamentos fundindo passado e futuro naquele
pedaço de pano esticado sem presente algum. A tinta acrílica em seu olfato,
como uma droga de preferência, a textura brilhante e profunda de cada
tonalidade, o pêlo macio e morto dos pincéis, o avental borrado, o cigarro
antigo, tudo... Tudo fazia parte do instante que tentava capturar qualquer
pretexto, o impulso daquele primeiro traço, a sua primeira pincelada.
Lenta? Seria um gesto comedido, uma
reflexão? Ou seria como se fosse um espasmo, um corte? Seria vermelho, o calor
vibrando aos olhos? Talvez um matiz frio e grave, um azul pressuposto, de
chumbo, pesado, lívido como o próprio espírito da solidão que a vitimava.
Carmen refletia, enquanto a tarde
alaranjava o ocaso: o sol vencendo a barra de nuvens, embrenhando-se no vão do
atelier já obscuro. Ela tinha que traduzir o sentimento de abandono que era
cada vez mais intenso à medida que sua impotência de esquecer aquela última vez
crescia. Tinha que pintar aquela rapsódia de Rachmaninoff, cristalizar no tempo
parado o piano que dilatava seu peito magoado. Estava só, por dentro e por fora
esquecida e breve.
As lágrimas químicas, o ar invisível
penetrando junto com o som as frestas entre as gavetas, por debaixo da porta,
as dobras do algodão grampeado no saibro de pinho, as cerdas entrelaçadas
presas à cinta de latão...
Decidiu pelo autorretrato.
Com uma estilha de carvão traçou um
círculo oval, duas tangentes, uma de cada lado, convexas em direção aos ombros
desnecessários, o pescoço esguio e teso. Conspurcava sombras com os dedos,
pressentindo relevos e imperfeições, espalhando a negra fuligem num transe cego
e intuitivo, enquanto a estranha e desconhecida obra se compunha juntamente com
o escuro que a noite sempre traz.
Outro cigarro. O fumo debulhado de
propósito sobre a paleta, uma trama menos vegetal do que sintética. O tabaco
granulado na cor com a qual fora preenchido o primeiro, porém último plano da
figura. O fundo preto secava ao redor de seu rosto vazio. Carmen ainda baforava
sobre a tinta: A vaga esperança de levar o olor daquele momento para dentro de
sua eternidade consumada.
Quatro mãos – uma de cada cor –
respectivamente: branco, amarelo, roxo e marrom; cada uma em cada um dos cantos
do quadro. Duas eram dela, as outras, não sabia...
De repente uma fisionomia reconhecida
foi aparecendo dentro do rosto daquela mulher já não tão estranha, já nem tão
infeliz, já não mais completamente solitária. O olhar assustado sorria. O nariz
encimando a boca disforme, grotesca. O cabelo voava um vento que não fazia.
Rugas. Cílios. Um colar de pedras absurdas e opacas enforcava-lhe umbilical.
Medo. Havia muito medo na expressão facial dos três arcanjos de asas quebradas
que Carmen pintou, como se fossem demônios inocentes, abortados, pairando sobre
a sua inadequada cabeça.
O piano continuava a incidir na ramagem
dourada que ia surgindo em espiral, ao redor de uma proeminência geométrica sem
nenhum sentido que aparecia aos poucos, dando uma idéia de escadaria que levava
a lugar nenhum.
Ela ficou durante algum tempo
hipnotizada, imóvel diante daquela grosseira personificação de si, antes de
pintar o pequeno vulto de um homem nu de costas – como se estivesse caminhando
para dentro do escuro daquele ressentimento surrealista. A garrafa de vinho
vazia testemunhando os seus aforismos de angústia e fervor; a paleta esquecida,
com o dedo polegar quase ferido, estrangulado sem irrigação sanguínea. Os
pincéis endurecidos daquele colorido rigor
mortis, como se não fossem ser aproveitados nunca mais.
As pílulas faziam efeito muito lentamente...
Carmen começou a lembrar-se: em seu
transe via as cores do atelier girando numa inevitável letargia. Só conseguia
pensar na última noite em que ela e Diego estiveram juntos. O seu corpo sob o
dele, as unhas fincadas nas costas do homem que era o pai do filho que não iria
ter.
No olor que fazia enquanto o silêncio
exalava, a cidade, paralisada na perplexa intimidade, calou suas ruas
fantasmas. O suor brilhando a pele, o desejo gelando as paredes e as
superfícies das telas; as mãos ávidas, entrelaçadas num único vulto indefinido
que vinha dos dois corpos pulsando cada veia daquele êxtase absurdo. Foram
tomados de certa comoção e um sussurro breve roubou o ar, quase parando os corações
siameses. O atelier tremia um frêmito de almas inteiras, e a paixão brilhava no
quilate dos olhos. Carmen podia se mirar no relance que o espelho captava: os
negros e longos cabelos de metal, refletindo a pouca luz que da fresta de porta
entreaberta insistia. E os livros fizeram sentido, petrificados sobre as
prateleiras da velha estante colonial. Os objetos nada mais eram. A métrica dos
quadros inacabados e inúteis, envelhecendo nos cavaletes. Lençóis alçavam
sinuosos, num enleio, levados por uma brisa cantilena para bem longe daquela
nudez de cromatismos. As roupas esquecidas no assoalho frio.
No epicentro avassalador de um gozo,
ela e Diego, envoltos em torpor, deleite e calma, sintetizaram outra espécie de
existência impossível – criara-se um tempo a que chamariam de futuro.
E a sísmica noite estalou em cada
grito, cedendo àquela ancestral monogenia. Então, súbito, o universo quis
mover-se outra vez, mas o destino, irremediavelmente alterado para sempre na
própria sentença factual, percebeu, ao saltar de dentro do inepto passado: O
Amor já era tarde demais.
Foi ali, naquele momento, que para
Carmen tudo perdeu a razão. Antes de adormecer, porém, ela ainda escreveu um
bilhete no verso da folha de papel que trazia o resultado de seu exame de
gravidez – reagente positivo. A letra quase indecifrável transcorria mórbida as
poucas palavras daquela débil sentença.
Quando Carmen foi encontrada já sem
vida, na manhã seguinte, uma réstia de sol iluminava e aquecia o seu rosto
pálido e defunto. Seus lábios sorriam uma paz suave e definitiva. Madalena, a
vizinha do apartamento contíguo, estranhou o som daquele piano que soara por
toda a noite e ainda continuava até então, esquecido, como que programado para
tocar para sempre. Notando a porta destrancada a mulher adentrou cuidadosamente
o atelier, depois de bater algumas vezes sem obter resposta, já pressentindo
tudo...
Por um momento sentiu-se incomodada
pelo fato de estar viva, ali sozinha, olhando perplexa para o corpo daquela
mulher irremediavelmente falecida. Caminhou até bem perto de Carmen com um medo
inútil e pegou o bilhete, arrancando-o da mão fria e tesa. No papel estava
escrito: “Este quadro eu deixo para Diego”. Apenas estas palavras estavam
escritas, pois na verdade o verdadeiro conteúdo da mensagem encontrava-se na
parte da frente da folha. Madalena demorou um pouco até perceber de fato o que
havia acontecido, depois de virar o papel e ler o resultado do exame. O forte
cheiro de tinta a atordoava: eram duas pessoas que haviam morrido, e não apenas
uma.
Inexplicavelmente, tomada de uma
curiosa presença de espírito, Madalena decidiu então que iria guardar aquele
segredo. Antes de entrar em contato com os familiares de Carmen, antes de tomar
qualquer outra providência, ela pegou uma bisnaga de cor preta que estava sobre
a bancada e, num impulso de artista ou de anjo, espremeu todo o seu conteúdo na
parte da frente do bilhete, espalhando com uma espátula a grossa camada de
tinta sobre toda a área do papel. De repente ali, onde estava escrito o
resultado positivo do exame de gravidez, não havia mais nada. Seria, muito
provavelmente, o cruel axioma que iria condenar Diego a uma vida de remorso e
amargura. Mais do que com o assassinato da criança que Carmen carregava em seu
ventre morto, Madalena, comovida, indignara-se com o sádico propósito que havia
por detrás daquela vingança, proferida contra Diego.
Então, usando a tinta ainda fresca
como um betume, Madalena colou a tétrica missiva na parte de trás da tela com o
auto-retrato. Decerto que a última pintura de Carmen iria ser entregue a Diego,
como se nada houvesse acontecido, de acordo com o breve e implacável
testamento.
Madalena saiu do atelier soluçando
uma profunda consternação. A música que tocava, ela a deixou tocando: Não
queria interferir em mais nada que dissesse respeito ao cenário daquele drama.
“Os que vêm que desliguem”, pensou ela, frágil e exaurida.
A rapsódia transformara-se num
réquiem, sem mais nenhuma cor. O piano se ouvia de longe, como se resto do
mundo estivesse em silêncio.