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sábado, 14 de março de 2009

HORA DO RECREIO



Andressa tem nome de menina rica. E não é só isso: rói também as unhas quando está confusa, sempre sem saber direito o que está acontecendo. Criança nunca sabe mesmo muito das coisas, nunca o suficiente para que possa abrir mão da constante necessidade de perguntar, perguntar e recorrer. Mas, recorrer a quem, oras? À mãe, ao pai, claro.
Andressa não podia. Não sabia onde estes dois, naquele momento, se encontravam. Será que sabia dizer qual o seu endereço? O bairro, talvez – no máximo: “lá no Por do Sol, moro lá no Por do Sol”. Como assim, Por do sol é lá nome de bairro? Pensei que fosse favela. E é. Favela do Por do Sol. Pelo menos é bonito, ingênuo, pelo menos o nome.
Deve ter uns dez, onze, doze anos quem sabe. Tudo isso? Que importa! O tamanho é de oito ou nove.
Ela tem carinha de menina triste. Não só triste: tem um rostinho já até envelhecido, a pobrezinha; as expressões de surpresa e descoberta, a empolgação pelo desabrochar dos mistérios curiosos da vida há muito que lhe sumiram da face. A face só guarda o desenho do susto. Andressa trouxe um susto esquisito e constante que se esqueceu de deixar lá pelo mundo de onde veio. Mas ainda não tem idade pra ser infeliz, então acaba que vive sorrindo.
Ela tem nome de menina rica, tem carinha de menina triste, e também tem olhos de doçura, a pequena Andressa. E como todas as outras meninas, ela também tem medo, muito medo. Só tem uma diferença: já sabe que não adianta. Não sei quem foi que lhe disse isso. Tudo o que sabe, só sabe que aprendeu por si só, coisas que não se lembrou de esquecer. Assim, como ficou sabendo que é perigoso atravessar a avenida, que precisa olhar para os dois lados; que tem que dormir antes das dez; que não pode meter o dedo no buraco da tomada – e na casa onde mora nem tem energia, vê se pode! Aprendeu também que faz mal, comer manga com leite, embora nunca tenha tido as duas coisas ao mesmo tempo, para poder tirar a prova. Criança só acredita vendo, tirando a prova, e é por isso que tem que ter cuidado. Uma das únicas coisas que Andressa aprendeu com a mãe, foi que nunca devia esperar por ela porque podia ser que não voltasse hoje. E com o pai... Com o pai ela nunca aprendeu nada. Mas ela só sabe que tem que ter um pai, “senão criança não nasce de jeito nenhum”.


Toda noite ela vai para a esquina onde tem o sinal.




As outras meninas, dentro dos carros, ficam pensando, roendo as unhas, com os dedinhos miúdos na boca, como é que deve ser ter tanta liberdade. Seus pais não lhes deixam nem sair na calçada sozinhas! Mas Andressa não liga, nem tem pena delas, enquanto coloca o rostinho colado na janela, com o semblante tristonho que realmente tem, sem precisar fingir, pedindo trocados. Ela sabe que aquelas meninas têm outro tipo de felicidade, a mesma que ela acredita que um dia vá ter, porque nunca tiveram coragem nem certeza para poder dizer-lhe que ela talvez nunca tenha.
Andressa já nasceu com nome de guerra. Também não sabe ler nem escrever, tal e qual aquelas outras meninas que ainda estão aprendendo. Este ano ela não tem escola. Nem no ano passado, nem no ano que vem.




Está de férias: as maiores que já se viu! Em compensação já nasceu trabalhando. Quando bebê, precisava do colo da mãe para ganhar seus trocados. Agora – agora faz tudo sozinha. Ela parece que sabe que vai ter que fazer tudo sozinha, assim como também sabe que a única coisa que sozinha não pode fazer, é criança.
Às vezes pára nas janelas dos carros e se esquece de pedir suas moedas: fica olhando, abismada, as mulheres com aqueles peitões, sem saber se aquilo dói, e nem muito menos se serve pra quê. Andressa é bem magrinha, as perninhas só não são mais finas que os braços compridos. Tão frágil que é bom nem saber.
Ela tem nome de menina rica, tem carinha de menina triste, olhos de doçura e nem parece que não tem infância, de tantos amigos que tem: o Vilamar, a Maria, o Cacau, o Dedim, na verdade Matheus – o que perdeu o indicador da mão direita sem saber dizer como; tem o Candinho, irmão mais velho da Ritinha, e irmão mais novo do Biluca; tem o Bodeco, a Naiara, a Diana, o Vavá, o Guilherme – que só aparece quando o pai não leva ele para catar lata e papelão. Tinha o Felipe, mas este o carro pegou, no ano passado, o Lilipe...





Enfim, a turma de Andressa é igual a qualquer outra, fazem sempre a maior algazarra, como se estivessem na hora do recreio o tempo todo. Como todas as outras crianças, querem exatamente as mesmas coisas: boneca, carrinho, lápis de cor, televisão, vídeo-game, bola, pipa, bala, biscoito, sanduíche, refrigerante, colo... Não. Colo Andressa até já parou de querer, faz tempo. Bastava as outras coisas mesmo, que, para ela – dentro da cabecinha dela – tudo já estava mais do que bom.





Texto: David Duarte
Imagens: Google Image Bank

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