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sábado, 16 de agosto de 2008

A SANTA QUE VIROU MULHER


E então as coisas que na verdade fui sentindo, a partir deste ponto, foram se tornando chaves para meu perplexo entendimento das muitas passagens de minha vida. Eu sou o meu passado, com seus fantasmas de algodão e sua face turba de tantos esquecimentos forçados pela dor. Uma dor que eu não podia reconhecer, não podia encarar, pois não eram apenas dores que doíam no corpo, e sim, ferroadas quentes na pele de minha alma. Por isso foi que tanto me manipulei para esquecer. Por isso esquecer era exausto e quase impossível, sempre. Como compreender tantas coisas se estas mesmas coisas me paralisariam tanto? Como exumar meus descaminhos todos, todas as desilusões, já que ilusões era o que de fato eram? Não. Tenho que me perdoar, agora sei. Tenho que encarar minha total e rude imperícia. Só assim, desta forma, poderia, posso e poderei me sentir menos desnecessária, menos tola, eu que nunca passei desta coisa ínfima.


Realmente: não preciso de mais ninguém para poder me atrapalhar. Basto-me, eu e o meu inútil talento para esquivar-me dos meus propósitos mais elementares.
Quando servia café para meu pai – as mãos trêmulas, os olhos arregalados de nunca poder errar – ou sempre estava muito doce quando a xícara estava cheia demais, ou sempre estava muito frio para o frio que então fazia. E eu continuo ainda nunca sabendo, a despeito de que talvez toda mulher saiba, nem que seja por obrigação, qual o ponto certo de uma gema de ovo para se poder agradar um marido insatisfeito. Continuo a ter medo de encarar as receitas, as mesmas que parecem tão simples nos livros e nos programas de televisão. Sinto-me inútil como uma rolha velha guardada dentro da gaveta das facas. Estou mera. Mera como se o mundo não precisasse de mim, e, o que é pior, como se ninguém realmente pudesse me convencer do contrário.
Como estas coisas tomaram conta de minhas reflexões balzaquianas? Não sei. Nem me perguntem. Só sei que precisei me sentir como um verme, para que viessem à tona todas estas súmulas impressões a respeito de quem tenho sido nos últimos vinte, vinte e cinco anos de minha vida tão desinteressante e maquiada.
A vizinhança toda sabe: eu nunca fui feliz.
Quis esconder o evidente durante quanto tempo? E, durante quanto tempo me acostumei tanto com isso que parei de notar que estive o tempo todo tentando fazê-lo. É por isso que meus ossos doem, por dentro deste corpo obsoleto. Claro! Como poderia uma estrutura que foi feita para ser rogada de tantos predicados sublimes, tantas evidentes qualidades humanas, tanta divindade, como poderia suportar, anos e anos a fio sendo tratada – e falo de mim mesma – como uma santa. Espere, eu explico! Nunca quis, nunca fui, nem poderia ser, nem mesmo querer ser santa. O que eu achava era que teria de passar por isso, por este incômodo estágio de evolução da natureza feminina, para poder me transformar em mulher. Santa, de jeito nenhum. Quanto mais fazia os gostos, quanto mais me denunciava em jogos de falsas renúncias – renúncias das quais eu nunca fora sequer capaz ou até mesmo digna – mais me afastava e isto sim, da mulher que almejava em mim, para mim. Quanto mais lambia os colarinhos e as mangas de camisa, quanto mais fervia, cozia e cozinhava, quanto mais e, a cada queimadura em meu pulso, a cada pingada de óleo vivo em meu busto, mais me afastava da mulher que nunca seria. Hoje sei disso perfeitamente.
E ainda tinha que ser a mais bonita das festas, mesmo sendo sempre, rumorosa e estupidamente, a mais desprezível, a mais protagonista de todas as chacotas e entrelinhas, por pura falta de assunto e consentimento meu. Tudo isto, se não fosse sorrindo, não servia ao propósito inicial: ser santa para depois poder ser mulher. Só que eu nunca iria – pelo menos por intermédio destas coisas infames – chegar a saber o que poderia significar ser exatamente mulher. Sempre havia o sono, o enfado, o desgaste, não de minha parte, lógico. Então eu me perguntava, antes de ter muito problema para poder conseguir dormir, me perguntava muitas e muitas vezes: “onde foi que eu errei?”




A partir deste ponto, descobri que meu descalabro não tinha mais volta. Minha obrigação, como se fosse um caso ligado a uma questão de cidadania, de auto-sobrevivência, de auto-preservação, era assumir a responsabilidade por certas atitudes. Nada do que havia feito até então funcionara, não para mim mesma, não para que pudesse haver me poupado de estar nesta bancarrota existencial na qual me encontrava.
Teria que fazer coisas que nenhuma de minhas vizinhas, nenhuma de minhas tias, minha mãe, nenhuma de minhas amigas – todas talvez tão infelizes quanto eu, ou mais – fariam. Coisas hediondas, porem hedonistas. Atitudes escandalosas, mas refutáveis, pelo seu próprio caráter evidentemente moral, humano.
E eu tinha toda esta razão.
De uma coisa servira toda a minha condescendência, toda a minha aleijada santidade durante todo este tempo em que estive sumariamente anulada: eu acumulara razões. Tinha uma bíblia de motivos plausíveis, de justificativas comoventes, mesmo já tendo aberto mão completamente do papel de vítima da situação. Minha memória, esta mesma da qual eu passei toda a vida fugindo, ela é que representava agora o meu inventário de alforria.
Passei então a me lembrar. Tudo de que eu me ocupava tinha a reza da lembrança. Ficava passando em minha mente os filmes proibidos de meu passado. Rir de muitas coisas foi me acostumando a ter mais força; força para lembrar, mais e mais. Chorar também me trazia a mesma desconhecida seiva. Então eu ia rindo, chorando, me assombrando, me comprazendo, eu ia, pouco a pouco, me tornando mestra na arte de lembrar, lembrar e lembrar. Tanto é que se me perguntavam: “Dolores, em que você está pensando” – esta pergunta que todos costumam fazer quando percebem que se está correndo o risco de acordar para o quanto que se é infeliz – eu respondia, calma, com uma ironia que me transformava lentamente: “Nada. Não estou pensando em nada. Estou só me lembrando”. Curioso era notar que ninguém ousava me perguntar “do quê” eu estava me lembrando. Era desconfortável demais receber a simples verdade como resposta a uma pergunta para a qual só se poderia esperar o silêncio de um olhar vazio.
Acontece que meu olhar estava repleto. Repleto de recordações que me davam a prerrogativa de ser a criatura mais merecedora de felicidade nesta vida. Meu olhar comprava com suas lembranças o futuro que me restava, tivesse isto o tempo que fosse. Meu semblante se transformara em tirânico e minhas manhãs começaram a ganhar um propósito. Um propósito tal começaram a ter os meus dias, que eu poderia continuar vivendo a mesma vida medíocre, assim, com esta nova e excitante maneira de olhar para mim mesma. Mas não bastava porque nada daquilo era o bastante. Afinal, era somente por isto que eu me encontrava naquele estado de espírito, naquele enleio, como alguém que sabe que está para sair da prisão. Aquilo é o oxigênio que faz com que não se morra. Não se pode dizer a alguém: “fulano, você sai daqui a três meses” e depois tirar isto desta pessoa. Só a pretensa liberdade pode transformar a rotina dos mortos em vida. E era isto o que eu era: uma santa, uma morta cheia de vida para poder dar e dar, sempre aos outros. É bem verdade que ia fazendo meus milagres, no dia a dia, para poder me suportar a mim mesma.


A raiva também teve uma contribuição valiosa em meu processo de assustar-me comigo mesma. Não sabia que era capaz de sentir tanta raiva. Percebi que o orgulho que sentia de ser a mais forte, a mais compreensiva, a mais calada, a mais submissa, percebi que tudo aquilo não passava de uma raiva imensa que eu nunca tivera coragem de expressar. Sempre achei que as santas tinham virado santas porque nunca se renderam à raiva. Depois, agora, muito depois, descobri que a mulher não nasceu de uma costela, mas sim, de uma coisa também dura e óssea que se chama raiva.
Eu continuava serena – até muito mais serena – porém, sabia que era detentora de um poder o qual nunca havia antes experimentado, ou seja, o poder de saber que minha insatisfação era motriz de minha condição individual neste mundo em que a mulher representava, isto se assim o permitisse, não mais que um detalhe. E eu havia me transformado em algo muito mais relevante do que um detalhe sem importância: eu me transformara em uma mulher, ainda que não soubesse ao certo que tamanho tinha isto, se cabia ou não cabia dentro de minha existência, dentro desta nova espécie de redoma, uma redoma da qual eu mesma podia tirar o vidro empoeirado para poder limpá-lo por dentro.

Quando então, Dolores e Vicente pararam na portaria obscura do motel, esperando pela recepcionista com o número da suíte, ele aproveitou para perguntá-la, ainda que transparecendo não estar nem um pouco preocupado com qualquer tipo de sentimento que a mulher pudesse estar experimentando, só para passar o tempo daquela indiferença sem nenhuma intimidade:
– E o seu marido, Dolores? Você não está preocupada? Acha que ele poderia desconfiar de nós dois?
– Número nove... Gosto de nove. – disse a mulher, completa e tranqüila, sorrindo delituosa, antes de responder a Vicente. O carro já entrando, suspeitíssimo e lento pela alameda escura do motel, ela rodopiando a chave presa na pesada plaqueta de bronze... – Não. Não estou preocupada, não. Expedito sabe. Ele já teve mais de vinte anos para saber que eu sou uma santa.



Texto: David Duarte
Imagens: Google Bank.

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